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A construção de uma relação de casal – uma relação de casal em construção.

 Por M. Elena Rise de C. Vianna

 

Resumo:         Este artigo se originou do trabalho de conclusão do curso em Terapia de Família e Casal do Instituto Familiae, em que a autora a partir da pergunta: É possível uma relação de casal estável em um mundo em mudança? Foram entrevistados casais que mantém  relações longevas.  As reflexões sobre os relatos, motivaram a busca na História sobre a compreensão de como a sociedade foi se organizando em relação ao casamento.  As entrevistas e o estudo sobre o percurso histórico das relações de casal indicam as relações de casal como constituídas culturalmente e em transformação ao longo do tempo, originando o título: “A construção de uma relação de casal –  uma relação de casal em construção.” A autora convida a uma reflexão, sobre a importância do terapeuta de casal cuide para que suas crenças e certezas não se sobreponham  às narrativas dos membros do casal.

Palavras-chave: relação de casal; conceituação histórico-cultural, postura reflexiva,  flexibilidade

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O amor é um fator determinante para se construir uma relação de casal? O significado que se dá ao amor nos dias atuais é o mesmo que se dava há séculos atrás? Buscam-se relações amorosas duradouras? Os prazeres são satisfeitos em relações passageiras e instantâneas?

O ser humano e o mundo em que ele está inserido estão em constante mudança. Portanto, se nós, terapeutas, optamos por trabalhar com as relações entre pessoas, necessitamos acompanhar essas transformações. Quando retomei o tema das relações duradouras de casal  na elaboração do trabalho de conclusão do curso de formação em terapia familiar e de casal, minha orientadora, perguntou que significado o título A construção de uma relação de casal – uma relação de casal em construção tinha para mim, percebi  que ele traduzia minha mudança de olhar sobre esse tema.

A primeira frase mostra como eu via até então a relação de casal. Para mim, esta era construída como se fosse um edifício cuja construção termina em determinado momento e, daí para frente, são feitas apenas manutenções. A segunda frase mostra o significado que atribuo à relação de casal no presente: ela está sempre está em construção. Não existe uma planta de um projeto predeterminado para se construir. Existem relações entre duas pessoas que fazem parte de uma rede de inter-relações que está em constante mudança.” …o que é valorizado diante de determinadas circunstâncias de vida perde valor perante outras; ou então diante, de circunstâncias idênticas, pode conscientemente modificar prioridades, construindo alternativas diferentes ante uma mesma situação. Vaitsman (1994, p.162 )

Que atributos e habilidades de cada um colaboram e facilitam para que essa relação perdure? Que disponibilidades internas do casal, necessidades, desejos, interesses, objetivos e projetos de cada um contribuem ou não para um casamento duradouro?

Exercitando uma perspectiva construcionista, não buscava respostas universais, mas comecei me perguntando: Quais são as minhas crenças sobre  relação de casal? Com que vozes eu converso com essas crenças? Que o valor e importância que dou para este vínculo?  Segui nesta reflexão olhando para o meu próprio casamento. Trinta e quatro anos vividos… Como foram vividos? Quais foram as escolhas selecionadas neste percurso? Como percorri este caminho até aqui? E os valores eleitos? Foram de fato assumidos?  Ao mesmo tempo em que me questionei, olhei para os casais que seguiram ao meu lado nesses anos. Alguns permanecem juntos, outros não.

Desse olhar/observação, resolvi conversar com os que continuavam casados, entrevistando quatro casais e procurando ampliar e enriquecer meu olhar sobre a relação de casal, para além do que aprendemos com casais que buscam a terapia, geralmente a partir de dificuldades no relacionamento. As entrevistas abertas, sem  uma hipótese a provar ofereceram um leque de narrativas em que os significados para “estabilidade” são construídos em cada relação. Não pretendi “descobrir” os verdadeiros determinantes de uma relação duradoura também porque os significados surgiram na conversação comigo, a partir das minhas perguntas, meu tom, minhas expressões faciais e quem sou eu, com meus conhecimentos prévios e preconceitos, para cada um dos participantes.

Fui também buscar na história a compreensão de como a sociedade foi se organizando em relação ao casamento. Isso também é relevante para um atendimento de casal. Compreender de que lugar “falam” faz toda a diferença.

Após essa “viagem” pela história, tendo como panos de fundo as relações de casal como estão no presente, conversei com casais, mencionados acima, que possuem  relações longevas. Como se reconhecem e se descrevem nessa relação? A que atribuem essa longevidade?  Essas foram as perguntas disparadoras para as conversas.

As leituras e entrevistas provocaram abalos em meus sistemas de crenças. Por ter um casamento longevo, criei hipóteses sobre as relações de casal que se tornaram crenças e me serviram de fio condutor quando atendia casais, tanto em Mediação de Conflitos como nos atendimentos na clínica social do Instituto Familiae.  Durante a formação em terapia familiar, especialmente no Módulo de Terapia de Casal (2011) fui renunciando a essas minhas “certezas”.

Alguns autores convidam à reflexão

Algumas leituras contribuíram para esse processo. O filósofo e médico Georges Canguilhem (1904/1995) abordou, em sua tese de doutorado em Medicina, conceitos sobre saúde e doença. Segundo sua pesquisa, o organismo doente é aquele totalmente adaptado ao ambiente, que se torna limitado e restrito a este. Quando o ambiente tem alguma modificação ele fica doente por sua rigidez e fixidez. Ao contrário um organismo saudável é aquele que não se adapta ao ambiente, possuindo capacidade de criar possibilidades de adaptação ao “novo”. Desse modo é flexível e maleável a mudanças, capaz de tolerar as variações do meio e instituir novas normas de vida. Ao contrário do censo comum que considera que o organismo adaptado é sadio, Canguilhem questiona essa visão de adaptabilidade/estabilidade. Para ele o adaptado se torna imóvel/rígido o que geraria a doença.

Revisitei meus conceitos sobre a estabilidade de uma relação de casal. Sempre considerei a estabilidade como algo adaptado ao meio e esses conceitos de Cangilhem produziram em mim um “novo” olhar sobre o relacionamento de casal, onde as relações estáveis são as que apresentam mais mobilidades. Elas são construídas e se transformam ao longo do tempo e o que consideramos estável é a possibilidade de mudança que elas possuem.

Nas palavras do autor: “Mas a maior parte do tempo, falando de condutas ou de representações anormais, o psicólogo e o psiquiatra viram, sob o nome de normal, certa forma de adaptação ao real ou a vida que não tem, todavia, nada de absoluto, salvo para quem nunca suspeitou da relatividade dos valores técnicos, econômicos ou culturais, quem adere sem reserva ao valor destes valores e quem, finalmente, esquecendo as modalidades do seu próprio condicionamento pelo seu meio social e a história deste meio social, e pensando de boa fé que a norma das normas se encarna nele, revela-se, para todo pensamento um pouco crítico, vítima de uma forte ilusão próxima daquela que ele denuncia na loucura (Canguilhem apud Franco, 2009, p.168).

É importante, quando trabalhamos com casais mantermo-nos atentos às nossas preferências por alguns discursos sociais que convidam idealizações da forma “correta” das relações conjugais impedindo assim suas possibilidades criativas no relacionamento.

Polity (2006) aponta a necessidade de que o terapeuta reveja seus conceitos e crenças, para produzir novos saberes com novas perspectivas tornando a prática mais flexível. Para isso:  (...).é conveniente que nos “desfamiliarizemos” das construções conceituais, que muitas vezes se transformam em crenças, e criemos espaço para outras possibilidades advindas da combinação entre acervo de nosso repertório antigo, somado ao novo, que surge no encontro com o outro, e que, por sua vez, gera uma espiral de processos de conhecimento, permitindo a convivência e uma ressignificação contínua e inacabada do discurso.(Polity,2006, p.101)

Segundo Colombo (2006, p.15)  “…o processo terapêutico com casais exige do terapeuta flexibilidade, capacidade de continência, acolhimento e placidez muito especiais”. Associo flexibilidade à susceptibilidade de se adaptar às mudanças, consoante as circunstâncias. Percebo, cada vez mais, como precisamos trabalhar com nossa maleabilidade. As dúvidas, angústias e conflitos,  trazidos nas conversas terapêuticas, acredito que poderão ser melhor acolhidas, se quem estiver nesse lugar de terapeuta puder ter essas posturas flexíveis.

Um pequeno “olhar” sobre a história do casamento

Rouche (2005), historiador, professor e escritor francês, especialista em Alta Idade Média, autor do livro: Casamento é uma invenção Cristã“, escreve que por volta do ano 1000 a Europa apresentava uma concepção da união entre homens e mulheres como sendo um resultado de interesses políticos e sociais. A união era decidida pelos pais, uma vez que eles tinham que ceder uma parte do seu patrimônio para o sustento e a moradia da nova família. Acreditava-se que essas escolhas favoreceriam paz entre famílias, pois quando o sangue das famílias se misturava, não havia possibilidade de guerra. Sendo assim, no século X não havia espaço para o sentimento.

No Mediterrâneo, final do século X, desaparece a escravidão dos povos vencidos nas guerras e consequentemente desaparece o concubinato das mulheres escravizadas, a monogamia se instala com o ideal de fidelidade e indissolubilidade. As leis da Igreja sobre o casamento iam ao encontro à mentalidade da época abrindo um novo espaço para o casamento cristão. O amor conjugal tornava-se mais comum do que o amor de posse.

Nessa época, a expansão urbana permitiu que as famílias se multiplicassem e rompessem as fronteiras de seus feudos. Somente a nobreza e as famílias reinantes mais antigas resistiram a essas mudanças. Os que adotaram e acolheram a doutrina cristã como uma liberação se lançaram em busca de um amor mais construtivo, promotor de vida.

As mudanças ocorridas com essas determinações religiosas foram dando uma importância ao sacramento despido de erotismo. O sexo era visto como algo que poderia profanar o casamento. Del Priore (2011) enfatiza esse momento quando se refere aos primeiros livros publicados no Brasil, entre eles, “Manuais do Confessor”. Foram escritos para orientar os padres a ensinar os casais a se comportarem no casamento. Os casais não poderiam trocar ósculos (beijos), não poderiam ter preliminares e não se podia controlar os nascimentos. A Igreja nesse momento exercia uma grande influência na sociedade. Criavam-se normas, regras cerceando o relacionamento entre os casais, pois institucionalizavam como esse casal “deveria” se relacionar!

Del Priore (2005, p.95) aponta a aliança entre a medicina e a Igreja na tentativa de manter o amor como perigoso: O sentimento amoroso teve um poderoso inimigo nessa época de opressão: a Igreja. No entanto ela não está sozinha na luta para impor a moral cristã. O amor passa a ser perseguido também por uma antiga ciência: a medicina.[…] (que) não o considera um pecado, mas uma doença. O amor excessivo é ruim para a saúde. A “luxúria”, considerada um desarranjo fisiológico, como expressão direta do amor, tinha que ter remédio. […] Acreditava-se que o desequilíbrio ou a corrupção dos humores, graças a secreção da bile negra, explicasse uma desatinada erotização. Dela provinham os piores crimes, os mais violentos envolvimentos afetivos e os mais desumanos atos.

A historiadora relata que essas crenças ajudaram os homens a viverem uma vida sexual fora do casamento. O século XVI, com o surgimento da Santa Inquisição, não só foi marcado pela perseguição de judeus e protestantes, mas também das pessoas que não seguiam essas regras impostas pela Igreja. Durante os 300 anos seguintes a Igreja define, no mundo ocidental, o que deve ser feito em um casamento.

Entre 1914 e 1918, ocorreu a Primeira Guerra Mundial, os homens deixaram seus empregos para irem à guerra no intuito de defenderem sua pátria. Esses postos foram sendo preenchidos por mulheres. No final da guerra muitas mulheres foram dispensadas, pois, os homens voltaram para assumirem seus postos. Algumas mulheres, entretanto, se recusaram a voltar às suas ocupações domésticas permanecendo nas indústrias. Aos poucos, elas foram ingressando no mercado de trabalho, lutando por seus direitos.

Entre 1939 e 1945, durante Segunda Guerra Mundial as mulheres ocuparam todos os tipos de funções nas indústrias e mesmo no front em todas as nações. Especificamente nos EUA a mão de obra feminina teve uma participação fundamental na indústria bélica, as linhas de produção de aviões, motores, munição e trens foram ocupadas por elas.

Com as mudanças significativas, no pós-guerra, das crenças sociais e das transformações sociais, culturais e religiosas, o  homem e a mulher foram ocupando outros lugares na relação de casal em que necessidades e desejos são negociados e os tradicionais papeis masculinos e femininos são flexibilizados.

E no Brasil?

No Brasil, devido a forte tradição católica, houve grande influência da Igreja nos costumes, até hoje encontrada em redutos mais tradicionais. Nos séculos XVII e XVIII, segundo Del Priore (2011), não havia muita ordem e responsabilidade nas relações de casal no Brasil. A maior parte da sociedade dormia em redes ou esteiras. A cama, como utensílio, chega ao Brasil só no século XIX quando as casas ganharam janelas. A cultura médica também colaborou para esse atraso no desenvolvimento das relações de casal. Os médicos achavam que as mulheres não deveriam saber de nada, o próprio clitóris, descoberto no século XVI some da literatura e do conhecimento social, surgindo depois, no século XIX. O que interessava era a reprodução e não o prazer. Homens e mulheres dormiam com camisolões e o corpo da mulher não podia ser apalpado.

Segundo Costa (2004), a mulher cumpria um papel social de esposa e mãe. O homem era visto como “todo poderoso”, com prestígio. A esposa e filhos o viam como patrão e protetor. Ele precisava da submissão de todos da família para cumprir o seu papel social. A igreja endossava esse papel do homem na família e na sociedade.

Essas crenças religiosas foram incorporadas na época em nossa cultura desenvolvendo uma dupla moralidade. Os adultérios femininos também aconteciam, mas o significado social era oposto ao masculino e durante o período colonial, segundo as Ordenações Filipinas o marido tinha o direito de matar a esposa adúltera e seu amante – no caso deste não ser nobre, situação em que este deveria ser degredado.

A “necessidade do amor” em si aparece, na história das relações de casal, somente a partir do final do século XIX e início do século XX. Na poesia do século XIX a mulher é colocada em um pedestal.

Nas primeiras décadas do século XX, a imigração de europeus não ibéricos e não católicos e o início da industrialização do país foram fatores de grande influência nas relações de casal. Foram introduzidos novos valores substituindo os que aqui predominavam. Foi se tornando intensa a vida nos cafés e confeitarias. Os jovens se libertaram dos pais e o casamento romântico, tanto nas áreas urbanas como rurais, foram se tornando mais comum. Apesar dessas transformações o Código Civil de 1916 mantinha o compromisso com o Direito Canônico e com a indissolubilidade do casamento. A mulher era considerada incapaz para exercer certos atos e se mantinha em posição de dependência e inferioridade perante o marido.

Após a Segunda Guerra Mundial, a classe média brasileira viveu um momento de expansão. Nas cidades, a população teve um maior acesso às informações, ao lazer e ao consumo. O carro popularizou-se, assim como clubes, cinemas, excursões e viagens. Os jovens podiam ficar mais tempo juntos namorando, apesar que deviam seguir ainda alguns padrões culturais como por exemplo: manter a virgindade até o casamento, celebrar o compromisso de noivado antes do casamento entre outros.

Em 1942 foi introduzido no Código Civil o artigo 315, a possibilidade de separação sem dissolução de vínculo, ou seja, o desquite. A proporção das separações aumentou nos anos seguintes, apesar do desquite não admitir novos casamentos. Sobre esse período, Del Priore (2011) continua sua análise histórica se referindo aos anos 1940 a  1950,  onde a mulher aceitava seu papel de esposa e mãe sem grandes sonhos e se sentia  preenchida com a designação de seu papel social, até a década de 60. Mas, grandes mudanças ocorreram nessa década, na esteira de movimentos sociais em outros países: movimentos jovens como o dos hippies nos Estados Unidos, dos estudantes na França, conhecido como maio de 1968, movimento feminista e a revolução sexual, em parte possibilitada pelo surgimento da pílula anticoncepcional, dando maior liberdade na escolha e autonomia feminina em relação ao seu corpo. Nessa época, também, mais mulheres começaram a se profissionalizar. No início da década de 1970 surgem as primeiras revistas voltadas para casais.

O divórcio, entretanto, só foi instituído com emenda constitucional em junho de 1977, regulamentada no final de dezembro do mesmo ano pondo fim à discrepância de ser o casamento o único contrato civil sem cláusula de distrato. Foi um instrumento de autonomia para a mulher. Isto corrigiu a incoerência  existente entre a lei de 1890 que tornava o estado laico separado da Igreja, desde o início da República.

A partir da década de  1990,  as mulheres começam a ocupar cargos executivos de destaque. Nos últimos 20 anos, a sociedade passa a ter uma mensagem social de que “todo mundo é obrigado a amar e ser feliz”. (Del Priore, 2011).

Observando o momento HOJE…

Na Pós – Modernidade, nome que começa a circular no começo da década de 1980, a sociedade de produção se torna uma sociedade de consumo. Essa sociedade de consumo foca nos objetos que dão prazer. Felicidade passa a ser sinônimo de “ter acesso” a muitas mercadorias que se oferecem com alta rotatividade de escolhas, sempre havendo a possibilidade de novas se a atual não for satisfatória. Em uma cultura consumista, onde são oferecidos inúmeros produtos, o prazer passageiro e a satisfação instantânea também colocam como objeto, a escolha amorosa. Essa satisfação instantânea é característica de um mundo movido a sensações, sem memória e sem história, em oposição a um mundo onde sentimentos são compartilhados e cuidados. O casamento contemporâneo supostamente é baseado no amor e o amor não é objeto que se possa escolher e comprar. Só que o amor não é um objeto que se possa escolher e comprar.

Cito duas correntes de pensamentos, dentre outras, sobre essas ideias. Uma das correntes tem como representante Richard Posner, jurista americano, autor de quarenta livros, e Gary Becker, professor da Universidade de Chicago que ganhou o prêmio de Economia em 1992 por sua pesquisa a respeito do fundamento econômico de certas decisões humanas importantes, entre elas o casamento e o divórcio. Os dois defendem que, se há um vendedor e um comprador, e que de forma livre, sem coerção, entram em um acordo comercial sem que cause danos a terceiros, a transação é legítima não importando qual é o produto.

Representante da corrente oposta está Michael Sandel, professor de filosofia da Universidade de Harvard, autor do best-seller; “O que o Dinheiro Não Compra”; onde defende os limites éticos que permeiam o mercado. Considera que existe uma diferença entre a economia de mercado e a sociedade de mercado. A primeira, é que propulsionou o crescimento de várias sociedades ajudando-a a se organizar. A segunda, a sociedade de mercado, considera que tudo está à venda, ela invade a vida privada, mas não leva em conta os valores morais e éticos. Sandel considera importante ampliar um debate democrático sobre esses valores, e com seu olhar humanístico, estes não podem ter preços.

Ambas as correntes procuram  interpretar as mudanças que estão ocorrendo nas relações humanas dentro da sociedade. Se por um lado Posner e Becker defendem que, se a sociedade priorizasse o mercado de consumo todas as necessidades seriam atendidas, Sandel considera imponderáveis as variáveis humanas, portanto colocar as relações sociais a serviço de valores econômicos não garantiria uma sociedade melhor.

Diante dessa análise de nosso mundo atual como fica nossa “relação de casal”? E o amor? Procura-se ainda investir nesse sentimento? Qual sua importância na nossa sociedade?

Segundo Costa (1998): O amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida. O amor foi inventado como o fogo, a  roda, o casamento, a medicina, o fabrico do pão, a arte erótica chinesa, o computador, o cuidado com o próximo, as heresias, a democracia, o nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo. (Costa, 1998, p.12) (grifo meu).

Portanto, quando caracterizamos o amor na sua universalidade, queremos dizer que aprendemos a valorizar o amor como um bem desejável e que sabemos reconhecer em experiências emocionais passadas semelhanças ou identidades com experiências amorosas presentes. E esta capacidade de reconhecimento é ensinada e aprendida como qualquer outra. O amor não é pré-existente, ele é construído histórica e culturalmente. Depende do contexto, ele pode ser ou não idealizado, pode ser ou não romântico. Dizer que ele é uma crença emocional é conceber  que ele também é construído socialmente como qualquer outra crença cultural, cognitiva e social.

Já Maturana (2004) “sustenta a teoria de que nós, humanos ocidentais modernos, somos seres basicamente amorosos em função de nossa organização e estrutura. Entretanto, porque nascemos e vivemos em uma cultura patriarcal-matriarcal europeia, negamos, ou não nos apropriamos devidamente desses fundamentos amorosos” (apud Mathis, 2010, p.45) (grifo meu)

    O amor é uma crença, ele foi criado pela cultura humana, como nos diz Costa (1998) ou ele faz parte da natureza humana como expressa Maturana? Se construímos o mundo em que vivemos, como também construímos a nós mesmos, o amor pode ser descrito e aceito como verdade universal, se assim o consideramos. Por outro lado se descrevermos o amor como inerente ao sujeito, pela própria descrição, esse sentimento pode se tornar uma realidade. Portanto o que muda o conceito – amor – é o olhar do observador. O ato de observar muda a crença no amor.

Segundo a psicanalista Maria Rita Kehl, em entrevista ao Café Filosófico (2011), o casamento hoje é uma soma de escolhas; amorosa, erótica, projetos de vida, entre outros. Segundo ela, o casamento continua sendo valorizado porque “ampara psicologicamente” – “dá proteção” – e nossa sociedade, por ser individualista, não nos oferece esse amparo, não temos apoio coletivo, e o casamento oferece esse apoio. Essa segurança que nos é oferecida nos momentos difíceis, a presença de uma “mão” amiga, nos mostra “quem somos”, ajudando a constituição da identidade. Kehl coloca que a sociedade precisa ressignificar os ideais de um casamento.  Segundo ela só assim conseguiremos ter casamentos bem sucedidos e separações bem sucedidas.  Esse ideal presente nas relações de casal faz com que cada um fique focado na qualidade dessa relação, qualidade de amor. Vive-se mais, favorecendo o individual em relação ao coletivo. Essas situações geram um conceito de amor e de casamento diverso do que se tinha antes. O casal buscava sua complementaridade absoluta nessa relação, “sentimento unificador de duas individualidades” (Vaitsman, 1994), hoje a individualidade aflora as diferenças, gerando os conflitos. Estes não necessariamente significam rupturas. Se negociados, podem ser geradores de transformações na  relação com adaptações às necessidades de cada um.

Os discursos e crenças universais sobre uma relação não explicam mais essa diversidade tão presente. Fica assim impossível a integração de duas individualidades em uma singularidade. Vaitsman (1994) continua: “Nesta situação, a identidade inventa soluções que não consegue apresentar homogeneidade nem durabilidade ao longo do tempo. Os requisitos e as especificidades individuais são tantos que as decisões tornam-se pragmáticas, contextuais e flexíveis”. Sendo assim, o casamento vai se resignificando e o que se acreditava como importante para se ter uma relação  duradoura não cabe mais hoje e não sabemos como essas relações serão no futuro.

Bauman (2010) define o amor na atualidade como “amor líquido”: ... é um amor “até segundo aviso”; o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo.

As relações no mundo atual são, com frequência, passageiras, daí sua denominação “amor líquido”. Buscam-se relações intensas com satisfações momentâneas e quando estas não forem mais atingidas muda-se para outra mais satisfatória. Ao mesmo tempo há a busca de durabilidade. Penso que estamos em uma época de transição. As relações de casais atuais não querem “repetir” o modelo passado e há experiências diversas para esta relação.

Bauman (2011),  interpreta essa nossa época como a “fragmentação da vida humana, as sociedades foram individualizadas focando no significado da vida e da felicidade da vida.” Ao mesmo tempo, segundo o autor nunca na História existiu uma interdependência tão grande nas relações, na comunicações e conexões. Ele faz referência sobre a preocupação que se tem hoje em se criar uma identidade, passa-se a vida redefinindo a identidade. Denomina nossa época como “modernidade líquida”, seu conceito fundamental. É assim que ele se refere ao momento histórico em que vivemos: “Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem.” […] Além disso, ocupamos um mundo pautado pelo “agora”, que promete satisfações imediatas e ridiculariza todos os atrasos e esforços a longo prazo. Em um mundo composto de “agoras”, de momentos e episódios breves, não há espaço para a preocupação com o “futuro”.

Para ter com quem compartilhar os bons momentos de vida ou as adversidades que encontramos, precisamos desenvolver a capacidade de amar. Bauman considera necessárias duas qualidades para desenvolver essa capacidade: a humildade e a coragem, que são raras em nossa cultura atual. Segundo ele, o mundo líquido em que vivemos, por ser imprevisível, instável e confuso torna difícil nossa capacidade de amar. Define o amor como “vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado….Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama…Amar diz respeito à auto sobrevivência através da alteridade” (Bauman, 2004, p.24). É exatamente isso que faz o amor: destaca um outro de “todo o mundo”  Bauman, (2004, p.36).

Estamos ainda sustentando as crenças históricas de nossas raízes sobre o casamento? Ou estamos ressignificando essas crenças? Se o amor for considerado uma crença emocional, como citado por Costa, ele poderá ser interpretado e ressignificado de outra forma? É a nossa relação com esse sentimento que possibilita sua permanência e durabilidade?

As ciências humanas têm passado por questionamentos englobados sob o título de pós-modernidade. As “verdades universais” têm sido questionadas e o estudo da linguagem ocupou um lugar de destaque, por seu caráter performático e constitutivo do que chamamos de realidade. Esta nova compreensão questiona a ideia da modernidade de verdade como a correspondência entre uma descrição específica e a realidade não linguística.

Essa mudança conceitual nas características e funções da linguagem foi transformando o conceito de homem, de “ser universal” que contém uma essência, para um “ser relacional”. Na psicologia, o movimento conhecido como Construcionismo Social (Gergen, 2010) descreve os processos pelos quais as pessoas constroem a si mesmas ou ao mundo em que vivem através dos processos relacionais e discursivos. (Guanaes, 2006) A veracidade de certas descrições é aceita por nós como verdades universais, pois, participamos social, histórica e culturalmente dessas práticas discursivas. Desse modo, criamos realidades na interrelação com os outros. “A perspectiva construcionista vem questionar a universalidade destas e de outras explicações de mundo, nos convidando a entendê-las como construções sociais” Guanaes (2006 p.19).

A importância desse conceito é perceber e “compreender como as pessoas coordenam suas ações em torno dos sentidos do mundo que constroem em seus relacionamentos e quais as possibilidades de vida que esses sentidos criam, sustentam ou impedem” Guanaes (2006 p.20).

Continuando a conversa com os autores acima, entre outros que seguem, transcrevo os diálogos com os casais entrevistados que mantém relações longevas. A pergunta foi sempre a mesma: quais são os ingredientes que eles consideram importantes para manterem duradouras suas relações amorosas? Entremeado pelas conversas fui “recheando” os autores que de alguma forma me identificava.

As Conversas…

  1. e O – casados há 19 anos
  2. – Acho que nós temos: cumplicidade, respeito, parceria e confiança. Para mim são essenciais para qualquer casamento. Hoje em dia, os jovens querem tudo na hora, é tudo muito rápido. Eles nem querem entrar em contato com as dificuldades.

No momento que R. compara sua relação de casamento com as relações dos jovens, afirmando: querem tudo na hora, é tudo muito rápido. Eles nem querem entrar em contato com as dificuldades, me reportei a Costa quando afirma que hoje os prazeres momentâneos são mais procurados: “Pouco a pouco, aprendemos a querer dos “sentimentos” o que esperamos das “sensações”. Ou seja, assim como na gramática das sensações aprendemos a repudiar com veemência toda dor ou qualquer desprazer, também queremos evitar sentimentos que nos façam sofrer. Não porque somos covardes ou excessivamente narcisistas, mas porque estamos sendo habituados a procurar prazeres mais fáceis de comprar e instrumentalizar” (Costa, 1994, p.214).

Essas afirmações ativaram lembranças de um jovem casal que havia atendido e que escolheram se relacionar dessa forma, procurando não entrar em contato com sentimentos que os fazia sofrer, mas estavam sofrendo… Essa experiência me ajudou a refletir sobre escolhas possíveis ou não. Como escuto essas afirmações na cadeira de terapeuta? Como seguir na conversa com esses casais?

  1. (segundo casamento) – Para mim, para o casamento durar tem que ter muito esforço de cada um, perseverança e solidariedade. Filhos também são muito importantes, família é gostoso. Mas a essência é o amor, senão tiver amor tudo isso não ajuda. Com amor conseguimos entender as diferenças.

Quando O. disse: ter muito esforço de cada um ele se referiu ao que Gladis Brun (2011) em sua palestra no Instituto Familiae expôs, que investir em uma relação de casal dá trabalho, e que não aprendemos isso, e tem sempre que estar em negociação. Em cada negociação exitosa, cada parceiro cria seus próprios recursos ampliando conhecimentos para essa convivência. O. teve outro casamento antes desse atual, deu a ele outro lugar, pois por já ter vivenciado outro, pode avaliar e apostar no ingrediente que para ele faz a diferença.

  1. e I. – casados há 43 anos
  2. – “Nas primeiras crises fui fazer terapia. Para mim é o que ajudou muito, não enganchava mais. Eu mudei muito e ele também. Acho que tivemos muitos casamentos dentro do mesmo. O casamento se sustenta em um tripé: admiração, respeito e gostar de si mesmo. Primeiro precisamos gostar muito de nós mesmos para podermos gostar de alguém. É importante termos admiração um pelo outro e também, muito respeito.
  3. – Acho que em um casamento tem que ter aceitação de um pelo outro. Aceitar cada um como é, reconhecendo que cada um é cada um. A reação de cada um nas dificuldades é diferente, daí tem que aceitar essas diferenças. No decorrer do tempo há muitas mudanças como conseqüências das dificuldades. Precisamos também cuidar para não se machucar – respeito – e refletir, pensar duas vezes antes de falar, para não magoar e se arrepender depois. Às vezes nem tem volta!

Refletindo sobre o que esse casal citou como ingrediente: gostar de si e aceitar o outro, fiz a relação da importância em se conhecer para poder se gostar e aceitar a si e aceitar o outro como é. Segundo White, (2000), (…) o desenvolvimento de um senso de autenticidade pessoal é o resultado de processos sociais nos quais demandas específicas sobre a identidade, socialmente negociadas, são reconhecidas ou legitimadas por outros. Por meio desses processos, dessas demandas identitárias, aprendemos a nos descrever.[…]. A primeira comunidade de pertencimento, que oferece uma narrativa sobre nós mesmos, é a família de origem. Entretanto ainda segundo o autor “embora essas histórias contribuam para um certo grau de determinação da vida, raramente esta dão conta de todas as contingências que surgem na “vida vivida” […] As histórias pelas quais as pessoas vivem são cheias de lacunas, inconsistências  e contradições que contribuem para certa indeterminação; São essas lacunas, inconsistências e contradições que estimulam as pessoas a se engajarem ativamente em “ fazer sentido” ( White, 1991)..

Entendo as afirmações de Michael White como um convite ao questionamento das “verdades” que regem nossa compreensão de nós mesmos e de nossas relações com o mundo e de uma permanente reflexão sobre como legitimamos as narrativas contadas sobre nós e sobre como editamos nossas próprias narrativas.

A importância de se conhecer e se aceitar favorece um olhar para o outro aceitando-o  como é. Acredito que é o primeiro caminho da aceitação e ao mesmo tempo do não julgamento. Se, se aceita cada um com suas habilidades e dificuldades pode-se desenvolver a respeitabilidade e liberdade da individualidade de cada um.

E.e O. – casados há 36 anos

  1. – Sabe, acho que temos compreensão entre nós. Ajuda mútua, sempre nos ajudamos quando cada um está em crise. Tivemos crises e acho que nos fez crescer dentro da relação. Sempre conversamos, não essa conversa que se fala hoje; conversar sobre a relação; mas quando sentimos algum incômodo. Nossa relação foi tendo adaptabilidade. Quando trabalhávamos juntos tivemos que fazer muitas conversas, pois senão era o dia inteiro falando de trabalho. Veja, agora resolvemos nos aposentar e tivemos que fazer muitos acordos para que um não invadisse o espaço do outro, pois iríamos ficar o dia inteiro juntos. Tivemos muitos casamentos entre nós dois. Ah! Também acho que é importante sermos altruístas. Vejo que hoje em dia os jovens são muito egoístas, só pensam neles!
  2. – Nossa relação tem muita confiança mútua e cumplicidade. Mas isso não foi sempre assim. Foi sendo construído durante a vida. No começo eu nem podia olhar para o lado que lá vinha ataque de ciúmes. Acho que nosso casamento foi se estruturando com o tempo. Nós mudamos muito. Mas, é engraçado, eu sou muito apaixonado. Quando saio de casa não vejo a hora de voltar para ficar com ela. É, acho que o amor é muito importante também. Não adianta falar que é só companheirismo, amizade; tem que ter amor.
  3. e O. mostraram em suas palavras que foram construindo durante o tempo os ingredientes que consideravam importantes para manterem-se juntos, procurando atender suas próprias necessidades. (…) as pessoas desenvolvem aspirações e projetos que mudam ao longo da trajetória de vida... recompõem permanentemente as várias faces de suas identidades ao lidar com situações em contínua mudança. Modificam sua maneira de ver o mundo à medida que suas necessidades e possibilidades mudam e ao mesmo tempo, cria novas possibilidades. A trajetória da vida é um percurso com saltos, continuidades e descontinuidades.( Vaitsman,1994, p.176)

Reafirmando o que coloquei acima, a individualidade é uma habilidade que traz um sentido de liberdade e se tornam uma base importante para uma relação longeva.

  1. e U. – casados há 23 anos
  2. – O que contribuiu nessa nossa relação foram os princípios familiares. O propósito de casar, para formar uma família, coincidiu com ele. Os valores familiares. Eu acredito na família. Quando houve crise, quando estava ruim, coloquei na balança a família, e aí vem o querer manter. E vem também um receio de desfazer a família, receio do desconhecido. Acho que o importante é a transparência da relação e a sinceridade de um com o outro.

Quando R. falou sobre princípios familiares, ela se referia a sua crença na constituição de uma família como ingrediente principal na relação de casal. Costa (1994)  refere-se às crenças, emoções e valores da seguinte forma… “são as emoções que permitem às crenças e desejos adquirirem o poder de transformar em deliberações e ações” (Costa,1994, p.193).

Essas afirmações me fizeram pensar que são nossas crenças que guiam nossas emoções, daí a importância de se perceber de que crenças que se está falando em uma conversa em terapia: “(…).as pessoas desenvolvem aspirações e projetos que mudam ao longo da trajetória da vida. As necessidades de cada um vão se transformando nessa trajetória. Objetivos e projetos de vida vão se transformando também” Vaitsman (1994, p. 152).  Como lidar com essas transformações dentro de uma relação respeitando-se a autonomia e liberdade de cada um?

Durante o curso de terapia de casal foi oferecida uma metáfora para as relações estáveis: os prédios do Japão cuja flexibilidade permite que se mantenham estáveis mesmo durante terremotos. Penso que foi isso que aprendi com essas pessoas que disponibilizaram alguns momentos para conversar comigo sobre suas particularidades afetivas.

Como eu vejo “a relação de casal”.

Depois dessa escuta fiz para mim mesma a pergunta feita aos casais que conversei sobre “relação de casal”: o que contribuiu para que minha relação de casamento permanecesse até hoje? Quais os atributos que considero importantes para se ter uma relação longeva?

Durante muitos anos elegi alguns atributos que considerava essenciais para ter uma relação de casal saudável, porém com o passar dos anos foram se modificando e outros foram surgindo. Acredito que daqui alguns anos serão outros ainda. Percebo hoje que a flexibilidade às mudanças foi um dos que me acompanhou nesses anos de compartilhamento. Parafraseando, Brun (2011), não aprendemos que casamento dá trabalho e que sempre precisamos estar em negociação! Quando a atmosfera está leve, as negociações são leves. No cotidiano, o sentido das ações e atitudes de cada um não são dados a priori, mas, algo construído nas suas histórias de relações anteriores e um sentido comum é uma construção que depende do diálogo dos dois. Se há problemas, com filhos ou financeiros entre outros, essas negociações acabam sendo difíceis. Todo relacionamento humano envolve negociação, e, negociar envolve aspectos negociáveis e inegociáveis. A cada negociação que sai exitosa, recursos vão sendo criados pelo casal que amplia os conhecimentos para o exercício da convivência. Uma dupla amorosa se sustenta quando os dois se sentem ganhadores.

“É historiando nossas experiências que construímos repertórios de ações possíveis. Quais repertórios de narrativas sobre casamento encontramos em nossas trajetórias de vida e quais demandas identitárias estes propõem aos Eus Masculinos e Femininos, que vão formar a maioria dos Nós-Casal?” (Cruz, 2006 pp.46-47).

O trabalho de conclusão do curso de formação em Terapia Individual, de Família e de Casal – TCC, transformado nesse artigo, me fez refletir sobre a motivação que nos leva a formar um casal, a questionar os valores que atribuímos a essa escolha e as perdas e ganhos obtidos quando nos entregamos para o outro. E no meu lugar de terapeuta, esses questionamentos e reflexões fizeram toda a diferença. Penso em duas palavras que se complementam e que resumem esse meu percurso de estudos e reflexões: MALEABILIDADEA/FLEXIBILIDADE, que traduzo como  aceitação, sem julgamento das escolhas feitas pelo outro, (neste caso os pacientes). Acredito que com essas posturas poderei ser mais útil para quem me procurar como terapeuta. Afinal, “não é dentro da nossa mente que temos que ‘olhar’ para saber como pensamos, e sim devemos ‘olhar’ para nossos discursos”(Gracia, 2009,p.27).

Considerações Finais

Relendo as conversas com os casais que estão em relações mais longevas, imaginava listar muitos ingredientes em comum. Isso não aconteceu. Houve uma diversidade desses ingredientes, cada qual com sua história e vivência. O que percebi em comum é que todos apresentaram flexibilidade às mudanças, relataram experiências vividas que ajudaram a integrar novos atributos, um olhar no passado, vivendo o presente com projeção futura. “A vida é maior que a soma de seus momentos (Bauman (2010).

Se nós, sujeitos em uma relação, priorizarmos a importância de nos conhecermos, aprendermos a nomear, descrever as nossas ações e posturas possibilitando o que Schnitman (2000, p.305) nomeou como “saber de si em contexto”  podemos facilitar a convivência na relação.

Pensando que “somos agentes de mudança”, o saber de si em contexto ajuda-nos, ao interagir na relação, a reconhecer o contexto, a saber, como se está neste contexto, como se descreve e qual postura queremos ter nele. Isso possibilita que haja mais clareza em nossas relações. Schnitman (2000, p.303) explicita que “nascemos em narrativas de um grupo, experimentamos, compreendemos e ordenamos nossas vidas como histórias que estamos vivendo. Narramo-nos, narramos a outros e somos narrados. Nesse narrar, o si mesmo torna-se/tornamos quem esses relatos configuram”.

Ao me propor a escrever sobre esse tema, pretendi ampliar minhas possibilidades de reflexão para flexibilizar as ideias/crenças que possuo sobre a relação de casal. Acredito que essa reflexão sobre a relação de casal,  além de ter sido útil  para refletir sobre meu casamento, também me ajudou a sentar em um lugar mais confortável quando atuo na cadeira de terapeuta de casal.

    Portanto, esse estudo proporcionou-me a mudança de algumas crenças, desconstruindo conceitos e verdades aprendidas durante meu percurso até o momento. O autoquestionamento em relação a essas crenças sobre relacionamentos amorosos, ampliou meus pensamentos, sentimentos e emoções, fazendo-me buscar novos conhecimentos teóricos que me ajudaram a ser mais flexível e aceitar que não há garantias e nem certezas nas realidades vividas. Fizeram-me sair do lugar das certezas, renunciar às próprias crenças, e assim ampliar as possibilidades da interação com o cliente. Isso se torna relevante na abordagem construcionista, dando um lugar mais confortável quando se senta na cadeira de terapeuta de casal.  Compreender de que lugar “falamos” faz toda a diferença….

 

REFERÊNCIAS

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